Seu Jorge e o Bloco da Madeira

Como eu ia dizendo no post anterior blocos espasmáticos surgem quando há muita gente junta e pelo menos 1 instrumento. E foi o que aconteceu logo depois da história anterior. Conversando com o Saci chegamos à conclusão que o negócio era descobrir onde haveria algum instrumento e montar o bloco ali mesmo. Ouvimos de longe 1 tantã e não perdemos tempo. Seguimos o som até chegar a um sujeito que parecia uma versão mais mendiga e mais velha do Seu Jorge. Ele ia tocando seu tantã de ferro e um outro cara que parecia o empresário dele ia puxando os sambas e pagodes.

Nos juntamos ao grupo e pouco depois outras pessoas se uniram. Processo típico do Rio de Janeiro; onde tem muita gente outras pessoas se juntam porque deve ser algo interessante, aumentando o número de integrantes do grupo em escala geométrica. Com o grupo cada vez maior alguém gritou "Órge, órge, órge. Bloco do Seu Jorge!" e todos acompanharam. Uma loirinha se empolgou e foi pro meio da roda sambar o grito de guerra do bloco recém criado. Logo o grito mudou para"Órge, órge, órge. Burguesinha do Seu Jorge!". Ela se achou o máximo e seguiu com o grupo.

A esta hora começamos a caminhar. O empresário alimentava Seu Jorge com goles de cerveja 3 vezes por minuto e controlava as músicas que poderiam e as que não poderiam ser cantadas pelo grupo. Isso até o grupo ficar grande o suficiente para destituí-lo do cargo. Vê se pode... É carnaval! Ninguém pode controlar. Com o grupo grande Seu Jorge passa o instrumento para alguém e vai em direção à areia. "Ar, ar, ar. O Seu Jorge foi mijar!" Seu Jorge voltou, retomou seu instrumento e o carnaval continuou.

O bloco foi andando do posto 9 ao posto 8. Incrivelmente era um bloco essencialmente masculino. Público que cresceu consideravelmente ao passar pela Farme. As únicas mulheres do bloco eram a burguesinha, uma amiga dela e uma baiana gordinha que estava empolgadíssima. Cantamos 3 sambas antigos, 2 músicas do Raça Negra e 2 funks antigos, além, é claro do clássico das marchinhas Aurora. Música essencial em um bloco que se preze.

Pouco antes de chegar ao posto 8 Seu Jorge parou de tocar e na primeira fala da noite, pediu silêncio e atenção. Todos respeitaram, afinal ele era o coração e a alma do bloco. Ele então começou a cantar uma música aparentemente de sua autoria:
"A minha mulher
Ela é discaradinha
Quando ela bebe
Ela perde a linha..."

A partir daqui tinha mais uns versos difíceis de entender, mas que davam a entender que a mulher ficava fora de casa a noite toda na esbórnia e voltava pra casa querendo dormir. E o corno em questão colocava aí em prática sua vingança:
"Eu vou te madeirar
Eu vou te madeirar
Eu vou te madeirar
Até o dia clarear!"

O refrão pegou logo na primeira vez. O povo cantou o tempo inteiro e obviamente a música vinha acompanhada de uma coreografia que não pretendo descrever. Em 1 minuto eram mais de 50 pessoas cantando o refrão e fazendo a coreografia na Vieira Souto, inclusive eu e o Saci numa perna só.

A música acabou. A criatividade também. Voltamos então do posto 8 para o 9 cantando todas as músicas que já tínhamos cantado de novo, mas dessa vez substituindo os refrões por:
"Eu vou te madeirar
Eu vou te madeirar
Eu vou te madeirar
Até o dia clarear!"

E a coreografia sendo feita por todo mundo - cariocas, baianos, alemães, japoneses... - por quem o Bloco da Madeira passava. No final havia muita gente e além do tantã inicial havia 1 tamborim e uma lixeira da Comlurb servindo de instrumentos. Seu Jorge ficou todo satisfeito com sua música na boca do povo.

No alto daquele morro tem um coqueiro

Zé Pereira que é Zé Pereira não dorme. Depois de todos os blocos de ontem a noite terminou na praia de Ipanema, que estava lotada depois da passagem do "Simpatia é Quase Amor" e do "Que Merda é Essa?" e na esperança dos desavisados de rolar o "Empolga às 9". Com tanta gente junta no carnaval carioca não poderia ser diferente; aconteceram vários blocos espasmáticos. 

Eu e meu amigo Saci Pererê vimos uma cena tradicional carnavalesca. Dois sujeitos levando um fora de duas mocinhas. Normal, não tivesse acontecido tão na nossa frente a ponto dos indivíduos se sentirem na intimidade de puxar papo conosco depois do fora. "Com essas aí não rolou, mas não dá pra ganhar todas. Já peguei 8.", disse um deles se gabando. "Viemos lá de Minas e o carnaval aqui do Rio é uma maravilha."

O Saci que não é bobo já foi puxando a sardinha pra ele quando disseram vir de Minas Gerais. Falou da Associação dos Criadores de Saci, que fica em Itajubá, no sul de Minas, e da Sociedade dos Observadores de Saci. Só pra se gabar também. Mineiro que é mineiro também não fica pra trás e nossos novos amigos interioranos contaram o segredo de suas conquistas. Uma cantada infalível que vou lhes contar em primeira mão. Eles abordam as menininhas "prendadas" com a inesquecível questão: "No alto daquele morro tem um coqueiro. Um coco caiu do coqueiro. Rola ou não rola?"

Saci e eu ficamos estupefatos. Conhecemos muitas histórias. O Curupira então bota fogo nas nossas cabeças de tanta história, mas essa do coqueiro foi inédita. Mais 2 minutinhos de papo e lá seguiram os dois e seus coqueiros para abordar outras moçoilas. Como vieram foram. No estilo de amizade de carnaval. E nem sei seus nomes para dar crédito a tal cantada.

Salve Momo!

Clementina de Jesus

Hoje quero aproveitar a sua sensibilidade para falar de alguém que mudou minha forma de ver Cultura. Essa pessoa não precisou fazer muito esforço para me transformar e nem nunca vai saber o efeito que causou em mim.


Clementina de Jesus nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, na zona rural de Valença. Mudou-se para a capital para o pai tentar crescer na vida. Trabalhou desde menina como empregada doméstica. Seus pais foram escravos beneficiados pela Lei Áurea.


É uma brasileira. Lutou uma vida inteira contra a pobreza. Lutou e nunca abandonou sua Cultura. Não pra forçar uma barra como fazem os intelectuais, mas justamente pelo contrário; ela não abandonou a Cultura porque era isso o que ela respirava. E pra mim não há melhor conceito de Cultura do que aquilo que se vive, o que se respira. 


Todo ano freqüentava a igreja de Nossa Senhora da Glória, onde entoava seus cantos. Numa dessas festas para Nossa Senhora foi avistada por um jornalista e produtor musical, o Hermínio Bello de Carvalho, que ficou impressionado com o que viu e ouviu e apostou na produção dela.




Clementina gravou o primeiro disco aos 62 anos de idade. Nem por isso deixou de ser empregada. E sendo empregada não conseguiu juntar a contribuição necessária ao Estado para se aposentar. Sua alforria foi comprada por Hermínio e outros amigos artistas, que juntaram o valor que faltava para que ela se aposentasse.


Ela se dizia católica. E quem não diria num país onde quem não é sofre preconceito? Acho que pra ela já bastava ser mulher, negra, favelada e velha. Mas ela mesmo acreditava em seu catolicismo. E seus pais, ex-escravos, provavelmente acreditavam no deles também. Esse é o catolicismo brasileiro; cheio de influências e agregações. Sem por isso deixar de ser verdadeiro.


E isso tudo é revelado no canto da "Rainha Quelé". Vários pontos de Umbanda são cantados por ela. Seu samba é muito mais regional do que o que era cantado já na época. Até as roupas têm a influência africana. Tudo sem propósitos intelectuais. Era ela. Original. Não era a toa que muitos a chamavam instintivamente de "mãe".

Diogo Mainardi escreve constantemente em suas crônicas para a revista Veja que o Brasil é um país que não tem Cultura. Que no máximo o que se faz aqui é um som tribal, selvagem ou sei-lá-o-quê-mais. Fico triste quando leio esse tipo de opinião. E essa é só mais uma demonstração do extermínio cultural feito nesse país há mais de 500 anos.

 

Mainardi ganha espaço na mídia para dizer o que alguns querem ouvir para não se sentirem tão sozinhos nesse país de "pobres miseráveis". Para essa classe o Brasil é uma merda e cada um que fuja para onde puder (mas não sem antes explorar isso aqui ao máximo). Queria poder ignorar essa gente, mas não posso. Tive educação e aprendi a não ignorar quem agride meu semelhante. 

Fico pensando em quantas Clementinas nós talvez tenhamos perdido por causa do aparteid cultural em que vivemos. A falta de oportunidades mata. Falta de oportunidade de emprego mata de vergonha o chefe de família - e isso foi o que eu mais vi ao distribuir sopão conversando com moradores de rua. Falta de estudo mata a possibilidade de crescimento das pessoas e do país. Falta de oportunidade de difusão cultural mata a Cultura.


Talvez na Islândia sejamos mais felizes. E daí? Quero ser feliz aqui, independente do nome que tenha o aqui. E se for pra sair daqui, que seja sem nunca negar minha origem. Gosto muito da Björk. Ouvir demais cansa, mas gosto da atitude dela. Altamente libertária, mas sempre cantando as lendas saxãs, por exemplo. E viva a Islândia.


Mas viva o Brasil também! Viva Clementina de Jesus, Cartola e Nelson Cavaquinho! Viva Hermínio Bello de Carvalho! Mas enquanto não valorizarmos o que temos permaneceremos tendo muitos passarinhos para serem soltos ainda até que os pesadelos cessem...


Encontrei um vídeo maravilhoso de Clementina com Tetê Espíndola (e narrado pelo Hermínio). Incrível o contraste lindo das duas. Duas vozes extraordinárias e completamente diferentes. Uma canta e depois a outra canta. Enquanto uma canta a outra está sempre lindamente perdida:  



Querido leitor, me desculpe pela "videorragia", mas minha paixão por Clementina de Jesus é inexplicável em palavras. E hoje seria o aniversário de 108 anos da Rainha Quelé.



Semana Musical

Quinta-feira passada completaram-se 32 anos do acidente de carro que matou a cantora e compositora Maysa. Muita gente lembrou disso por causa da série que fez grande sucesso na Globo. Mas não páram por aí as datas marcantes e com proximidade para a música brasileira. Na segunda-feira anterior foi aniversário de Xangô da Mangueira (1923) - partideiro de primeira e diretor de harmonia da verde-e-rosa que faleceu no último dia 7. 

Quarta-feira (21) foi aniversário do compositor Ronaldo Bastos (1948), que integrou o Clube da Esquina em parceria com Milton Nascimento, Beto GuedesWagner TisoLô Borges e Márcio Borges. Foi parceiro, entre outros, de Edu Lobo e Tom Jobim. Tom Jobim (1927) que, por sinal, faria aniversário domingo passado (25). Mesmo dia do aniversário de Leny Andrade (1943). E mesmo dia também em que faleceu (2009) uma das mais tradicionais figuras do samba carioca, a Tia Doca, da Portela. Pastora que organizava rodas de samba e feijoadas maravilhosas pela cidade.

No dia seguinte (26) foi aniversário de Chico César (1954), também conhecido como "Mama Africa". Na terça-feira (27) seria aniversário do maravilhoso maestro Radamés Gnatalli (1906), que faleceu em 1988 (A MTV e sua gravadora espalharam que o DVD Paulinho da Viola Acústico era o primeiro DVD da carreira do músico, mas se você quiser te faço uma cópia do DVD dele na década de 70 que conta, entre outros, com a participação do maestro Radamés Gnatalli), e da lenda do jornalismo, o pesquisador de MPB Jota Efegê (1902), que faleceu em 1987. O dia seguinte (quarta-feira, 28) a este aniversário de falecimento foi o aniversário de Sandy (1983), mas prefiro lembrar de uma voz mais marcante que é a de Lúcio Alves (1925), que faleceu em 1993.

Hoje (29) seria aniversário centenário de Roberto Martins (1909), compositor que fez parcerias, entre outros grandes nomes da MPB, com Mário Lago. Entre seus maiores sucessos estão Favela (parceria com Waldemar Silva - que não tem nada de relevante pela internet), que até hoje é cantada nas melhores rodas de samba que se tem conhecimento, e Beija-me (parceria com Mário Rossi), recentemente regravada por Zeca Pagodinho para o DVD Acústico MTV Gafieira (se alguém quiser uma cópia é só falar comigo). Por sinal, Zeca Pagodinho (1959) está internado há 2 dias com pneumonia. Vamos torcer para ele estar em casa e bem no dia do aniversário dele, que é quarta-feira (04). Hoje não é aniversário dele, mas é aniversário de Jerry Adriani (1947).

Amanhã (sexta-feira, 30) é aniversário da cantora Clara Becker (1964), gaúcha, filha do ator Walmor Chagas e da atriz Cacilda Becker, é uma boa voz pouco valorizada ainda da MPB. Seria aniversário de Herivelto Martins (1912), que formou o Trio de Ouro na década de 30 com Dalva de Oliveira e Nilo Chagas. Herivelto casou-se com Dalva e eles foram pais de Pery Ribeiro. Herivelto foi autor, entre outros sucessos, de Ave Maria no Morro. Amanhã é ainda a data que marca o início das gravações do disco Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim em Nova Iorque (1967).

Sábado é aniversário do cantor Miltinho (1928), da cantora e compositora Joyce (1948) e do cantor e compositor Ernesto Pires (1957). Terça-feira (03) é aniversário de falecimento (1998) do cantor Sílivio Caldas, o "Caboclinho Querido", autor (em parceria com o jornalista e poeta Orestes Barbosa) entre outros sucessos do clássico Chão de Estrelas.

Segunda-feira (02) é um dia triste para a nossa cultura pelo falecimento de Chico Science, que criou um estilo e difundiu a cultura do interior de Pernambuco, especialmente o Maracatu, para o mundo. Colocou muitos artistas em evidência e criou a banda Nação Zumbi. Ele morreu dia 2 de fevereiro de 1997. Mas no mesmo dia, no mesmo Recife, 38 anos antes, vinha ao mundo o cantor e compositor Lenine (1959) trazer alegria e reflexão para nós, que curtimos sua música.

O dia da cultura brasileira é dia 5 de novembro e o dia do samba é dia 2 de dezembro, mas por que não comemorar o ano inteiro com boa música?